segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Irmão Campana-Design Brasileiro com orgulho.



A Magia da Multidão - 04/08/2009

Por Andréa Naccache - PsicanalistaSeria quase um ultraje aquela poltrona na salinha de estar do apartamento. Se não for pelo tanto de bonecas de pano que ela tem amarradas umas às outras em quase um metro quadrado de volume colorido, irregular, festivo, talvez seja pela difícil economia de espaço quando se tem essa poltrona: ela é tão insinuante aos olhos que não fica bem entre a mesinha e a parede. Ela pede espaço visual. Pede tempo de caminhar em sua direção para discernir o que é aquele emaranhado de vestidos e cabecinhas e trancinhas de pano coloridas. A cada vez, uma boneca nos olha. A cada vez, o emaranhado de perninhas e rostinhos parece comemoração ou briga, sono de criança ou tumulto. Uma poltrona como esta é um pouco dona do espaço e do tempo de quem está com ela. Provoca um desvio nas leis físicas do lugar. "Multidão" foi o nome que os designers lhe deram. Multidão de bonequinhas para sentar em cima. Seus criadores são Fernando e Humberto Campana. Desde que a indústria de massa ficou mais plural e menos repetitiva - passado o tempo daquele único modelo T de automóvel na paisagem, por ruas e ruas a fio - talvez Fernando e Humberto sejam o que todo comerciante quer ser, fora do expediente. Autores de um produto que fala por si, com um espaço comercial que é virtualmente nenhum, ou qualquer um onde o produto ou os designers estejam, eles são as próprias férias do varejo. São os homens que atraem o olhar da multidão enquanto olham para qualquer outro lado. Tem‐nos com vontade de comprar tão mais porque não são vendedores. Quando montaram seu website, a primeira preocupação foi que não tivesse que ser supervisionado ou conferido, porque é chato monitorar a internet. Além do mais, o último assunto deles seria estoque, preço, entrega. Pediram para os web designers uma outra invenção, menos falar nisto. São exploradores, cenógrafos, perfeitos anfitriões para nosso tato, ou produtores de espetáculo.O varejista esperto, atento à técnica de anos de balcão, diria que Fernando e Humberto fazem uma tolice. Perdem a venda impulsiva de site, daquele leitor deslumbrado pelas palavras da imprensa, desde a última homenagem mundial que elesreceberam em Miami ou Milão. Sem procedimento comercial ostensivo, perdem de enganchar uma venda na outra, com descontos progressivos. Promoções? Confrontados com tantos métodos comerciais, contas e controles, receitas infalíveis, Fernando e Humberto vão pesquisar cinema, música, frutas no supermercado, bate‐papo com amigos inteligentes, em busca de ideias para sua próxima criação.Em um tempo em que o design moderno, como da inesquecível Bauhaus, está todo nas mãos de intermediários comerciais, compramos Corbusiers e Mies Van Der Rohes com desconto pela pouca nobreza do tecido ou do metal, e facilidades de entrega, pagamento, montagem. A venda - com todos os seus elementos comuns - fica em primeiro plano. Não é de estranhar: hoje em dia, é a vitrine da loja que dirige nossos olhos a uma poltrona Breuer. Para quem desconhece a importância histórica deste design, a loja indica o status do produto. Ao contrário, filha brilhante de nosso tempo, se a Multidão estivesse naquele lugar, seria a poltrona que chamaria os olhos à vitrine. O produto indica o status da loja. Claro que esta reflexão não termina com a apologia do bom produto para o comércio - como dizer que, se o produto é bom, vende‐se sozinho. Tanto menos em dizer que comércio costuma ser chato a menos que, inadvertidamente, ali apareça um pufe Campana. A proposta é outra. É descobrir de onde vem a magia da Multidão, que faz com que seus autores vivam de vendas, sem viver para as vendas. Para isto, primeiro vejamos o que é a magia. O termo vem da Grécia helênica, bem antes da imagem do Merlin medieval, em chapéu pontudo e camisola estrelada. O mago grego era o sábio capaz de ler estrelas e manipular o destino que elas prediziam. Na tradição da magia, um trabalho importante era a alquimia física, transmutadora de matéria - com o anseio do remédio máximo, elixir da vida eterna, ou de transformar metais simples em ouro.Se falamos em magia até hoje, dois milênios e meio após os gregos, mesmo com a ciência avançada e criteriosa que temos, é porque algumas ações humanas, em nosso cotidiano, ainda causam perplexidade sobre a natureza. Fenômenos que colocam um fascínio infantil nos olhos mais treinados. Atração irresistível. Radical diferença em relação ao já visto. Muito comércio empenha um tremendo esforço para fazer vez na multidão, consertando os erros de dois imperativos equivocados do varejo: dar máximo acesso a produtos, no menor espaço possível. Lojas quase indiferentes entre si pipocam produtos quase indiferentes, como se cada ambiente fosse um depósito "decorado", na estreiteza das passagens, para seres que circulam mal e mecanicamente, de mãos ocupadas com sacolas, a cabeça semi‐atenta e os cartões de crédito ativos. Vale ler Paco Underhill a respeito.Enquanto isso, como ponto fora do plano, alguns objetos parecem ter sido criados por homens que ouviam estrelas. Mas magia só é magia mesmo se, dada a explicação, permanece o encanto - e a explicação de certos designs pode ser encontrada nos livros fundamentais da psicanálise de Jacques Lacan.Se nossa percepção do mundo é uma interpretação (que até no cérebro se vê acontecer), tudo o que percebemos só pode fazer parte de nós quando apoiado ou conectado em algo que já tínhamos. Digamos: uma linguagem. Todos nós, falantes, usamos linguagem. Porém, com a psicanálise, podemos suspeitar que uma linguagem rigorosa e articulada não seja a única a operar em nós. Basta ouvir o que acontece quando nos distraímos das regras e censuras da fala. Os lapsos, os sonhos, os chistes, alguns sintomas corporais que parecem conquistar para a pessoa aquilo que ela não era capaz de pedir em bom português, são todos fenômenos que indicam uma fala amalucada, singular, de desejos e construções aparentemente aleatórias, acontecendo sempre por trás da nossa conversa clara e compreensível, que a sociedade aceita bem. Freud dizia que o inconsciente não descansa. É um trabalhador 24/7.Ora (direis) ouvir o inconsciente? É isto que fazem os magos da Multidão, ao dar vazão, no processo criativo, ao fora da lei e da lógica visuais comuns. Lacan chamou de alíngua o dialeto singular, estranho, que funciona em nós como base da fala - e que opera sempre, inevitavelmente, enquanto criamos. Muita gente tem vergonha de ser vista com sua alíngua - e não deixa escapar um nadinha em público. Bem justo: alíngua é o idioma da fantasia sexual, da sensualidade, da profunda intimidade, do tropeço, da vergonha, do capricho, da preguiça, do despacho, do riso, da captura do objeto e da fartura. Muita gente tem medo de ser ou viver o que todos sonham. Alíngua parece coisa para quatro paredes, ou nem lá, se as paredes tiverem ouvidos. Não há movimento de liberdade de expressão, quebra de censura, liberação sexual ou apologia da criatividade que destrave algumas pessoas de seu bloqueio com a alíngua (a psicanálise, porém, há de faze‐lo). Por isto, explicar a magia da Multidão não rouba o encanto da poltrona. É sempre um acontecimento, se alguém se permite falar sua alíngua a ponto de transformar o espaço perceptual da humanidade.Trabalhar com ela é suportar ser estranho, muito estranho, e um tanto inútil, para si mesmo e para os outros - e ter coragem de ouvir o que dizem as estrelas, até que umasurpreendente aplicação aconteça. É claro que, em seguida, vem uma reação de novidades em cadeia. Os Campana podem não se dar conta, mas mostram um profundo respeito pelo inconsciente, porque, ao esperarem cada nova costura de linguagem, toleram em suas mentes um sem número de formações que lhes envergonhariam, projetos inacabados, ou que eles acham que não parariam em pé, nem serviriam para ninguém. Quem conversa com eles, pode ouvi‐los dizer que assumiram "o partido do erro". Mesmo entre os designers brilhantes, o trabalho deles é considerado inusitado, mais transformador e solto. Em meio à moda internacional de linhas leves, polidas por máquinas de perfeito afinamento e brilho, da Escandinávia perfeccionista, Fernando e Humberto costuram bonecas de pano, mangueiras d'água, ralos, até derretem sadicamente as bonecas de plástico. Sua primeira exposição, por bom motivo, teve o título "Desconfortáveis", com a imagem de uma cadeira de ferro de pontas afiadas, em chamas. A liberdade de Fernando e Humberto abre uma brecha de liberdade em quem encontra seu objeto. Traz riso, vontade de aproximação e toque. Causa um transtorno salutar, uma renovação que será maior ou menor, conforme a sensibilidade do transeunte, mas que não deixa ninguém intacto.Fernando e Humberto, como criadores culturais, não vivem de necessidade, mas do que está além dela. Não pedem ou induzem a compra. Abrem objetos para a experiência dos outros. Objetos fascinantes ao tato, ao olhar, ao senso de tempo, até à percepção das pessoas das próprias necessidades - como se, para ter um Campana, também o comprador tivesse que viver muito às largas dos constrangimentos do mundo. Se eles são magos da percepção porque sabem mexer nas regras da linguagem, rompem também nossos costumes. São gênios do comércio porque transtornam as leis do mercado - se não as da ciência econômica (embora estejam quase lá, na categoria especial de artes), certamente as leis do varejo.


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